Socialismo,
Corvalán: "Socialismo com democracia no Chile seria contagioso"
Publicado por Unknown
Publicado em sábado, 28 de setembro de 2013
Luís Corvalán, principal dirigente do Partido Comunista do Chile por mais de trinta anos, foi o segundo homem do governo Allende. Nesta entrevista inédita, realizada há vinte anos, ele analisa os momentos cruciais da Unidade Popular, do golpe e fala do projeto de sociedade que tinham em mente. “Queremos um socialismo com democracia e liberdade, com sabor de vinho tinto e cheiro de empanada”, como dizia Allende.
Por Gilberto Maringoni, na Carta Maior
Por Gilberto Maringoni, na Carta Maior
Luís Alberto Corvalán Lepe (1916-2010) foi quase uma lenda na esquerda mundial. Senador, coordenador da campanha presidencial e articulador da Unidade Popular, ele foi o segundo homem do governo de Salvador Allende (1970-73).
Entre 1958 e 1990, Corvalán foi Secretário-Geral do Partido Comunista do Chile. Juntamente com o Partido Socialista, a agremiação compôs a espinha dorsal do governo da Unidade Popular. Sua militância teve início, em 1932, e se estendeu por 78 anos, até sua morte, aos 93.
Preso várias vezes e clandestino por largos períodos, Corvalán transformou o PCCh numa agremiação articulada e de grande densidade eleitoral.
Preso nos dias iniciais do golpe de 11 de setembro de 1973, Corvalán tornou-se – depois de seu amigo Victor Jara – a principal figura pública nos cárceres da ditadura. Sairia dali três anos depois, no bojo de intensa campanha internacional, para um exílio na então União Soviética. Voltaria à sua terra clandestinamente em 1988, pouco antes do fim do regime.
A entrevista abaixo foi realizada na tarde de 9 de setembro de 1993, numa modesta casa de San Bernardo, cidadezinha localizada a 27 quilômetros ao sul de Santiago.
Aos 77 anos, Corvalán estava no meio de uma campanha para senador. Não se elegeu. Uma draconiana lei eleitoral, herança dos tempos de Pinochet – cujas bases ainda se mantêm – dificultam enormemente o avanço eleitoral da esquerda.
Fui ao Chile por conta própria, para fazer uma grande reportagem sobre os vinte anos do golpe e os personagens remanescentes do governo Allende.
A intenção era publicá-la na revista Teoria & Debate, do Partidos dos Trabalhadores (PT).
O projeto foi abortado. No meio do trabalho, fortes febres e um indizível mal estar me obrigaram a voltar. Diagnóstico: uma hepatite C, que me deixou de molho por mais de um mês.
A entrevista com Corvalán permaneceu inédita. Seguem agora os principais trechos de duas horas de conversa com um personagem risonho e amabilíssimo, realizada quando o continente vivia o auge dos tempos neoliberais
Um corte na história
“O golpe chileno tem a ver com certas tendências existentes no continente. Sempre houve períodos de democratização relativa e outros de golpes de Estado na América Latina, com intervalo de um ou dois anos, a depender de cada país. A situação no Chile foi mais a brutal de todas. Aqui não se tratava simplesmente de mudar um governo por outro e nem de se trocar um regime civil por um militar. Tratava-se de impor um corte brutal nos rumos e na história do país. Surgira o governo da Unidade Popular, que tinha levado a cabo profundas transformações, propondo-se a construir uma sociedade socialista, nacionalizando todas as riquezas básicas e extrativas do solo, como as minas de cobre, de ferro, de carvão e a produção de cimento.
Allende nacionalizou 79 grandes empresas industriais, 16 dos 18 bancos comerciais existentes, expropriou cem milhões de hectares de terra, completando-se assim o processo de reforma agrária iniciado no governo de Eduardo Frei (1964-70). Além disso, foram incorporadas às instâncias do poder, à cúpula do Estado, à administração pública e à direção das estatais representantes do povo e da classe operária. Foi o primeiro governo da história do Chile que contou com a participação de quatro ministros operários, três comunistas e um socialista. A direita não tolerou isso”.
A unidade popular
“Todos nós – os Partidos Socialista, Comunista, Radical, Democrático Nacional e a Ação Popular Independente – estávamos unidos em torno de um programa comum que compreendia todas as áreas da política nacional e internacional, com destaque para os setores da economia, da educação, da saúde e da agricultura. As relações entre nós, no primeiro momento, eram positivas e construtivas. Havia, vez ou outra, dificuldades e diferenças. Essas se acentuaram com o tempo, à medida que a contrarrevolução foi ganhando força.
No final, as dissensões ficaram mais evidentes, principalmente entre os comunistas e socialistas. Nós não compartilhávamos das tendências ultraesquerdistas que começavam a surgir no interior do PS e que, de alguma maneira, precipitaram a situação posterior. Mas as diferenças não eram o essencial no interior do governo”.
O onze
“No dia do golpe, eu estava em casa e, muito cedo, recebi a informação do subsecretário do Interior, companheiro Daniel Vergara, sobre o movimento das tropas, particularmente em Valparaíso [tomada de assalto pela Marinha no dia anterior]. Rapidamente montamos uma reunião da Comissão Política do Comitê Central. O encontro durou até 10h30. Aí percebemos que o golpe estava consumado e que não havia condições de desbaratá-lo. Decidimos que a direção entraria para a clandestinidade, e seria encabeçada pelo Subsecretário-geral, Víctor Diaz, que figura entre os desaparecidos [descobriu-se posteriormente que ele foi jogado ao mar, de helicóptero, em 1976]. Definimos também que eu, por ser uma figura mais conhecida, , passaria a uma clandestinidade absoluta. Fui preso em 27 de setembro. Após três anos e dois meses no cárcere, fui para o exílio”.
Motivos do golpe
“Como já afirmei, a ditadura militar impôs um corte muito grande na história de nosso país. O Chile marchava rumo a uma sociedade socialista, por um caminho próprio e original. Allende dizia: 'Queremos construir o socialismo com democracia e liberdade, com sabor de vinho tinto e cheiro de empanada', aludindo a dois de nossos produtos tradicionais. O socialismo começaria a partir de uma vitória eleitoral, de acordo com a Constituição e as leis do país.
Acima de tudo, essa construção ocorria com liberdade política, reconhecendo os direitos da oposição e com a existência de pluripartidarismo. Nunca sustentamos a tese do partido único. Essa condição sine qua non que defendemos não está nos livros de Lenin e de seus continuadores. Tínhamos, assim, um regime especial, que despertou grande simpatia em todo o mundo.
E essa foi precisamente uma das razões do golpe, pois a Revolução Cubana já havia sido um grande problema para os Estados Unidos e para a direita. Um problema maior ainda seria a constituição de um exemplo contagioso no Chile.
A ditadura militar veio para estabelecer as posições do capitalismo e do imperialismo que haviam sido derrotadas. Devo lembrar que anteriormente, as minas de cobre estavam em mãos norte-americanas. Com Allende, elas passaram para o controle do país. Para reverter esse quadro, utilizaram a força das armas".
Objetivos da ditadura
"O golpe coincide com o fim do ciclo desenvolvimentista na América Latina e com o início da economia neoliberal. E isso, Pinochet impões a ferro e fogo. Esta a razão do golpe! Durante a ditadura, o Chile passou por momentos muito difíceis, também do ponto de vista econômico, com uma grande crise entre 1981-82. O resultado posterior, segundo eles, é que o país teve um grande crescimento, que chegou a 9% , em 1992, e com um desemprego baixo, na casa dos 5%. Passaram a dizer que existiria aqui um 'milagre chileno', a exemplo do 'milagre brasileiro', do início dos anos 1970. Mas quem se beneficia deste “milagre? O grande capital nacional e transnacional.
O número de pobres duplicou em relação a 1970. Tínhamos 22% da população nessas condições e hoje (1993), temos 40%! A participação dos salários na renda nacional era de 50% durante o governo Frei, subiu para 62% com Allende e no auge da ditadura, baixou para 34%. Os trabalhadores perderam conquistas importantes, houve redução do salário-mínimo e das aposentadorias".
O fim da URSS
Escrevi um livro expondo minha visão sobre o fim da URSS [El derrumbe Del poder soviético]. Em poucas palavras penso o seguinte: a Revolução de Outubro foi a maior transformação social de toda a História e a União Soviética foi um país socialista. Nasceu como um poder democrático e popular e representou um grande papel no mundo. O socialismo converteu um país atrasadíssimo na segunda potência industrial do globo em duas décadas.
Porém, uma série de fenômenos se cruzaram, ela viveu o tempo todo sob o assédio e o ataque das potências capitalistas, enfrentou o nazismo na 2ª Guerra Mundial (1939-45) e passou pelos desafios da Guerra Fria (1947-91). Proliferaram nesse quadro várias tendências internas negativas, como o burocratismo e o antidemocratismo, que criaram as condições para o seu desmantelamento.
Futuro
Vamos seguir sustentando as bandeiras do socialismo, da classe operária e das transformações sociais. Isso não é fácil. Nunca foi fácil ser revolucionário. Porém, eu sempre compartilhei de um pensamento externado por Marx, quando lhe perguntaram onde estava a felicidade. Ele respondeu: 'Na luta. Na luta pela transformação social em favor das maiorias'.
Passamos por um processo muito duro para o Partido, porém não nos dividimos e mantivemos nossas bandeiras. Não temos a mesma força e influência de antes, mas voltaremos a ter. Provavelmente não verei este momento, mas com o apoio do povo e de outras forças democráticas, voltaremos a empreender o caminho da construção de uma sociedade mais justa. De uma sociedade socialista, como queria Salvador Allende.
(Fonte: Portal Vermelho)
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